AGENTES DE LEITURA Inclusão social e cidadania cultural

Nossa tarefa é ler o mundo
Walt Whitman

O essencial não é ter um método para ler bem, mas saber ler, isso é: saber rir, saber dançar e saber jogar, saber interiorizar-se jovialmente por territórios inexplorados, saber produzir sentidos novos e múltiplos. A única coisa que pode fazer um mestre de leitura é mostrar que a leitura é uma arte livre e infinita.
Jorge Larrosa. Nietzsche e a Educação.


A leitura como direito
Em seu livro Como um romance, o escritor francês Daniel Pennac fala dos direitos imprescritíveis do leitor. São eles: “o direito de não ler, o direito de pular páginas, o direito de não terminar um livro, o direito de reler, o direito de ler qualquer coisa, o direito ao bovarismo (doença textualmente transmissível), o direito de ler em qualquer lugar, o direito de ler uma frase aqui e outra ali, o direito de ler em voz alta e o direito de calar”.

Para Pennac, tal como o verbo amar, o verbo ler não suporta o imperativo. Ler é outra coisa. Na leitura é preciso imaginar, portanto, trata-se de um ato de criação permanente. Ninguém ama nem lê por obrigação. Talvez, venham dessa afirmação, os direitos imprescritíveis do leitor pensados pelo escritor francês. E o primeiro é exatamente o direito de não ler. A partir dessa leitura inspiradora, fiquei pensando no prolongamento desses direitos com o exercício de imaginação que segue:

Toda pessoa tem o direito de ler. O direito de ler em casa no aconchego com os pais, os filhos, o marido, a esposa, o namorado, a namorada. O direito de ler na escola com o carinho da professora. O direito de ler na biblioteca na companhia dos livros. O direito de ler na roda com amigos. O direito de ler para dormir e sonhar. O direito de ler para acordar o mundo. O direito de ler para amar. O direito de ler para conversar melhor sobre as coisas da vida e do mundo. O direito de ler na escola durante uma aula chata ou na rede para enganar a preguiça. O direito de ler para se aventurar por entre saberes e sabores. O direito de ler para viajar por pessoas, tempos e lugares. O direito de ler para gastar os livros com as impressões digitais e com as asas da imaginação. O direito de ler para brincar com as palavras, as histórias, as poesias, as fábulas, os contos. O direito de ler para crescer com os livros fazendo parte de sua vida e de sua história. O direito de ler para compreender o que lê. O direito de ler para poder se encontrar com o outro, com o mundo e consigo mesmo. O direito de ler para escrever, reinventar e transformar o mundo. Junto a isso, mais dois direitos fundamentais: toda pessoa tem o direito de não saber ler, mas toda pessoa tem o igual direito de ter vontade de aprender a ler para viajar nos mundos que moram dentro das palavras.
Esse exercício de prolongamento dos direitos imprescritíveis do leitor é imaginado aqui com ênfase no direito à leitura como um direito de cidadania. Diz Jorge Luiz Borges, que o livro é a extensão da memória e da imaginação. Sendo assim, quem lê amplia seus horizontes, seus conhecimentos, seus repertórios culturais, sua capacidade crítica e inventiva. Quem lê amplia sua compreensão leitora e sua própria capacidade de ler o mundo.

Vivemos num país onde os indicadores de leitura não são nada favoráveis. Por mais que estejamos avançando, os níveis de compreensão leitora ainda são baixíssimos e o número de leitores, idem. Daí o acesso ao livro e formação leitora ser um direito básico de cidadania, de inclusão social e de desenvolvimento. É nessa perspectiva que o agente de leitura deve agir. Sua ação cultural é, por excelência, uma ação social de transformação da realidade onde ele está inserido. Numa dimensão mais ampla, todo agente de leitura é um agente cultural e social.

Uma ponte cultural

A ponte não é de concreto,
não é de ferro,
não é de cimento.
A ponte é até onde vai
o meu pensamento.

Lenine e Lula Queiroga

A imagem de que partirmos para pensar a noção de ação cultural é a ponte. Pela ponte fazemos contatos, ligações, intercâmbios, comunicações, diálogos e encontros culturais. A ponte é uma boa metáfora para a idéia de travessia cultural. Algo muito mais do que ligar um ponto ao outro, uma cultura à outra. A ponte pode ser uma zona de contato e de ação intensa de produção, difusão e fruição cultural.

Zonas de contatos, segundo Boaventura de Souza Santos, são áreas “onde culturas, sociedades, arranjos normativos, estilos de vida, concepções de mundo muito distintas, com formas de poder também muito distintas, se encontram”. Já ação cultural é um movimento de geração de interação e de diálogo entre sujeitos de meios sociais e de universos culturais diversos, através do compartilhamento de linguagens artísticas e de experiências culturais. A ação cultural implica, portanto, na compreensão intersubjetiva do lugar que ocupamos no mundo. De como, através da experiência com o saber e o fazer cultural, podemos compor interpretações e leituras como formas possíveis de atribuição de sentidos à produção simbólica e às relações do sujeito com o outro e com o mundo, numa perspectiva de subversão e transformação da realidade social.

Pensando com Maria Christina Almeida, “A ação cultural busca a expressão e a criatividade dos indivíduos no grupo e na comunidade. Está ligada à idéia de transformação, de emancipação a partir da expressão. Diz respeito não apenas a produtos culturais acabados, como também as condições que levem à capacidade criativa, à produção cultural.” Sendo assim, a relação do homem com o mundo não é uma relação direta, mas uma relação mediada e complexa. Daí a importância do papel do agente como aquele que estabelece uma interação entre os sujeitos e o mundo cultural que o rodeia.

A proposta dos Agentes de Cultura consiste em movimentar relações sociais através de instrumentos e linguagens artísticas e culturais. O agente é aquele que estabelece pontes de comunicação entre os universos que percorre, enfocando esses atores sociais como sujeitos que transitam entre múltiplos pólos, mobilizando idéias, estilos de vidas, práticas sociais, modos de percepção, objetos, linguagens e universos culturais. Dessa forma, os agentes de cultura, – enfatizando aqui, os agentes de leitura –  não apenas dão movimento a esse trânsito como desempenham o papel de fazer interagir diferentes mundos e experiências por meio da literatura numa interfase com outras linguagens artísticas e suportes de leituras.

Sendo assim, podemos pensar os Agentes de Cultura como sujeitos intermediários que provocam a comunicação entre mundos diversos, como tradutores e veículos das diferenças, sempre respeitando, compreendendo e fazendo compreender a diversidade cultural que os rodeia no sentido de valorizar e promover a diversidade humana. Por outro lado, não podemos entender o papel do agente cultural sem a sua função social, ou seja, todo agente cultural é, por excelência e em potencial, um agente social, um agente inventivo de transformação da realidade. Trata-se, portanto, de reconhecer a dimensão cultural da sociabilidade e a importância crescente da linguagem na construção social da realidade. Noutras palavras, cultura e sociedade estão indissociavelmente ligadas.

Nesse sentido, a ação cultural se apresenta como um princípio de inclusividade e de cidadania. Como instrumento que estimula a aquisição de competências, saberes, fazeres e compartilhamento de experiências que potencializem as capacidades e o poder de atuação das comunidades atendidas, de modo a diminuir as barreiras sociais e culturais e a descobrir nas diferenças riquezas próprias. Procurando valorizar e afirmar as diferenças culturais, étnicas e sociais, de modo a consolidar identidades, mas também dando a conhecer essas diferenças, facilitando a inter-relação e inter-compreensão dos diversos atores sociais.

Os agentes de leitura[1]
Os agentes de leitura com os quais me debruçarei neste artigo têm lá suas cores e peculiaridades. Trata-se de um projeto do Ministério da Cultura que foi buscar lá no Ceará, sua fonte de inspiração e de trabalho.

O projeto se insere no programa Mais Cultura e tem como objetivo promover a democratização do acesso à produção, à fruição e à difusão cultural através do livro e da leitura como ação cultural estratégica de inclusão social e de desenvolvimento humano, por meio de atividades de socialização de acervo bibliográfico e de experiências de leituras compartilhadas como exercícios de cidadania, de compreensão de mundo e de ação alfabetizadora.

Os agentes de leitura são jovens entre 18 e 29 anos, com ensino médio completo, situados, preferencialmente, num contexto sócio-econômico do programa Bolsa Família, selecionados por meio de uma avaliação escrita (interpretação e produção textual), fluência de leitura e uma entrevista domiciliar. Feito o processo de seleção, passam por uma formação continuada e cadastram um grupo de 30 famílias de sua comunidade, onde desenvolvem atividades de formação leitora como rodas de leituras, cirandas de livros, leituras compartilhadas, empréstimos de livros, contação de histórias, saraus artísticos, performances literárias, registros de contos populares e criação de clubes de leituras entre os membros de suas comunidades.

Os agentes de leitura atuam integrados às bibliotecas públicas municipais, dinamizando seus acervos e realizando programações culturais, como rodas de leituras e oficinas literárias. Da mesma forma, estão inseridos nas escolas, contribuindo na formação leitora de crianças e jovens, atuando articulado com os professores em projetos pedagógicos de incentivo à leitura, voltados para a comunidade escolar. Outros ambientes importantes para a ação dos agentes são os Pontos de Leitura e Pontos de Cultura existentes na em suas áreas de abrangência, mobilizando o acervo literário e participando das programações culturais nesses pontos, desenvolvendo assim, uma ação sistêmica de livro e leitura, onde educação e cultura atuam juntas e de maneira integrada, criando ambientes favoráveis para a formação leitora dentro das casas, gerando uma melhoria do rendimento escolar de crianças e jovens atendidos pelo projeto.

O projeto é uma ação de formação educacional e humana. Formação compreendida como uma viagem aberta, uma aventura, uma experiência de transformação e de encontros com o outro, com o mundo e consigo mesmo. Os agentes são selecionados e formados num processo contínuo, descobrindo o que há de melhor em si, para atuarem em suas próprias comunidades com responsabilidade social e comprometimento ético, desenvolvendo talentos, saberes e fazeres para compartilhar experiências de interpretações e de leituras de mundo por meio da arte e da cultura. Atuarão em seus territórios, gerando zonas de contato e pontes de interação, proporcionando às comunidades o acesso à produção cultural através de processos críticos e inventivos de compreender, criar e transformar o mundo a partir de suas próprias realidades; servirão ainda como incentivadores/propiciadores/divulgadores da produção comunitária para um contexto mais amplo, constituindo-se numa ponte de mão-dupla entre o local e o universal. Nesses termos, os agentes de leitura são construtores de pontes, gerando encontros e comunicações entre as margens, facilitando o acesso aos bens e serviços culturais. Atuando como leitores e escritores do mundo a partir da inserção e da interpretação de suas próprias realidades, estarão eles, também, ampliando seus horizontes, conhecimentos e capacidades de compreensão leitora e de escrita através das linguagens artísticas e do acesso aos saberes e à produção cultural universal.

Partindo dessa premissa, a formação dos agentes de leitura consiste no desenvolvimento contínuo de construção e experimentação de conhecimentos, conteúdos, procedimentos e habilidades em torno da sensibilização e pedagogia da leitura, dinamização do acervo literário, consciência e expressão corporal, literatura e contação de histórias, saberes comunitários, produção textual e criação literária, registro e difusão de contos populares, criação de clubes de leituras, planejamento das ações, bem como conceitos de leitura, cultura, ação cultural, inclusão social e cidadania cultural. Essas noções e abordagens compõem o cardápio básico cultural e pedagógico da formação dos agentes de leitura. No entanto, sua formação vai para além da carga horária dos cursos oferecidos. No âmago dessa formação está a vida de cada agente de leitura, compreendendo nesse percurso, a possibilidade de promover situações de formação leitora na sua própria vida. De como um agente de leitura tem que inebriar-se de poesia para derramar poesia na vida das pessoas, de como ele tem que ser tocado por um bom conto para pousar na inteligência do outro, de como ele pode se indignar com um texto para que possa provocar algum pensamento no outro, de como ele pode se emocionar com uma história de amor para compartilhar essa sensibilidade com o outro, de como ele pode se divertir com uma crônica para que possa sentir a alegria do outro, de como ele pode ficar mudo diante de uma beleza literária para que possa compartilhar seu silêncio com o outro. Afinal, como fala Bartolomeu de Campos Queiróz, ninguém dá conta da beleza sozinho, sempre necessitamos do outro para compartilhar da beleza que nos toca. É como ver um pôr-do-sol do sol e se lembrar de um bem-querer: “Quem devia está vendo este pôr-do-sol não era eu e sim fulano de tal”. O mesmo sentimento valeria para um bom livro que nos toca e nos envolve. É como se o agente de leitura dissesse: “que livro lindo, preciso compartilhar essa beleza com outras pessoas”. Aí pode ser uma criança, um homem, uma senhora quem fazem parte de seu itinerário por entres casas, escolas, bibliotecas, hospitais, presídios, pontos de leitura e outros ambientes favoráveis para a leitura.

A experiência da leitura
Para ser um agente de leitura a pessoa tem primeiro que gostar de ler, ter vontade e compromisso social de compartilhar esse gosto e sua experiência de leitura com outro tanto de gente, formando leitores em ambientes diversos como bibliotecas públicas municipais, escolas, hospitais, fábricas, empresas, associações, comunidades e dentro das casas, no seio de famílias que abrem suas portas para que os livros e a leitura possam entrar em suas vidas.

Daí a importância da dimensão da experiência. Destaco bem essa palavra. O educador espanhol Jorge Larrosa gosta muito de burilar com ela. Para ele, a própria palavra experiência nos ensina coisas. Ela vem do latim experiri e seu radical pode nos levar a idéia de relação, perigo, travessia, passagem, viagem. Para Larrosa, a experiência é cada vez mais rara, por falta de tempo e pela ânsia da pressa nos dias de hoje. Por isso mesmo, a experiência requer outro tipo de tempo e de espaço, que chamo vagar. Precisamos vagar para sentir o tempo da experiência. Mas deixemos o Jorge Larrosa com a voz. Num artigo intitulado Notas sobre a experiência e o saber de experiência, ele escreve: “A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço.”

Se a experiência é o que nos passa, o que nos atravessa, o que nos acontece, o que nos toca, a experiência da leitura só pode ser uma experiência de formação, ou, se preferirmos, uma viagem aberta de transformação. Creio que a ação do agente de leitura pode partir desse sentido e sentimento: a experiência da leitura é capaz de nos fazer melhores e ao mundo. Alberto Manguel em seu livro Uma história da leitura, diz isso com maestria: “Todos nós lemos a nós próprios e ao mundo à nossa volta para vislumbrarmos o que somos e onde estamos. Lemos para compreender ou para começar a compreender. Não podemos deixar de ler. Ler, quase tanto como respirar, é uma das nossas funções vitais." Que bela constatação. Penso que devemos nos guarnecer dela: ler é uma das nossas funções vitais. Por isso mesmo, lemos com os olhos e com a boca, com os ouvidos e com o nariz, com as mãos e com os pés. Lemos com a alma e com o corpo inteiro.

Aliás, como nos lembra ainda Manguel, existem várias formas de nomear a arte do leitor. Ou várias metáforas da leitura. Uma delas é considerar o livro como um ser humano ou o ser humano como um livro, o autor como um leitor e o leitor como um autor, o mundo como texto ou um texto como o mundo. O fato é que, como nos aponta Walt Whitman, nossa tarefa é ler o mundo. E, quem sabe, indo além, transformar o mundo através dessa arte de cultivar o encontro, chamada a experiência da leitura.

Uma imagem de pensamento: a vida dentro de um livro
Lilian é uma agente de leitura na pequena cidade de Mucambo, no estado do Ceará. Certa vez, em um de seus relatórios de atividades, narrou uma bela história. Ela nos conta que quando chegou na casa de Dona Antônia, uma velha senhora camponesa e artesã da palha da carnaúba, abriu um livro e começou a lê-lo. Lilian lia e Dona Antonia ria. Lilian atravessava um conto e Dona Antônia dava risadas. Quanto mais Lilian avançava nas páginas daquela história, mas Dona Antônia dava gargalhada. Ao final, quando Lilian terminou a leitura, a velha artesã disse:

- Minha fia, eu não sabia que a minha vida todinha tava dentro desse livro.

A frase da Dona Antônia foi o bastante para a Lilian perceber a riqueza daquele momento. Ela saiu dali semeando para sua comunidade que aquele era o livro onde Dona Antônia se encontrara. E todo mundo queria saber qual era o livro que aquela senhora tão querida estava dentro. Essa imagem de pensamento nos instiga a pensar a relação entre a vida e a literatura, entre o escritor e o leitor. E nessa relação, o que conta não é apenas o mundo que o escritor pensou, mas o mundo que o leitor pode criar e escrever. O mundo e a história que o leitor pode construir inspirada nalguma fábula, conto, romance ou poema. O que uma narrativa, um verso podem possibilitar de diálogo e de leitura de mundo por parte do leitor. Gosto dessa relação porque abala a idéia da autoria centrada na figura do escritor e coloca a leitura como uma experiência de viagem e de descoberta interior. Podemos sentir isso no belo poema Infância de Carlos Drummond de Andrade:

            Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre as mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé.
Comprida história que não acaba mais.
No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
A ninar nos longes da senzala – e nunca se esqueceu
Chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.
Minha mãe ficava sentada cosendo
olhando para mim:
— Psiu... Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro... que fundo!
Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda.
E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.
         
A partir disso podemos pensar em outro tipo de relação com a leitura. Tanto os versos finais desse poema de Drummond como a frase de Dona Antonia, nos levam a crer que, ao mesmo tempo em que à literatura pode levar a vida, a vida também pode nos levar à literatura. Está aí uma belo sentido e sentimento da ação de um agente de leitura.

Nessa perspectiva, quando um agente de leitura chega numa casa, seu objetivo não é desenvolver atividades pedagógicas com leituras funcionais e instrumentais, mas despertar o interesse e gosto pela leitura de maneira crítica e inventiva, como um prazer infinito na vida de cada pessoa. Quando ele faz um empréstimo de livro ou uma roda de leitura compartilhada numa casa, numa escola ou numa biblioteca, sua preocupação não é saber o que o leitor entendeu da leitura ou o que o autor quis dizer com tal frase. Ao agente interessa conversar sobre as coisas da vida e do mundo a partir da leitura de cada um. Quais as relações e que bifurcações essas leituras podem gerar. De como um bom livro pode nos levar para uma canção, um filme, uma peça teatral, uma dança, uma pintura, uma memória, uma cidade, uma paisagem, um tempo... e nos trazer de volta para o livro ou nos levar para um outro livro e viagem literária.

Por fim, retomo a frase digna de um Guimarães Rosa, que Dona Antônia soltou num encontro literário com a Lilian. O que elas conversaram ou por quais veredas as duas se embrenharam? Isso tudo me faz pensar na leitura como uma ação cultural dinâmica, que tem a ver com a formação e a aventura humana de cada leitor. Imagino ser isso a anima do agente de leitura: fazer cada um descobrir o que há de melhor em si, através do tato e do contato, do hábito e do hálito, do curso e do percurso, da vida e da experiência de cada um com a leitura como essa viagem de transformação e de encontros com o outro, com o mundo e consigo mesmo.

Fabiano dos Santos. Diretor de Livro, Leitura e Literatura do Ministério da Cultura, onde exerceu também a função de Secretário Substituto da Secretaria de Articulação Institucional e Coordenador de Articulação Federativa do Programa Mais Cultura. Doutor em Educação pela UFC e Mestre em História pela PUC-SP. Graduado em História pela UFC. Foi Coordenador de Políticas de Livro e de Acervos da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, no período de 2005 a 2007, onde concebeu e coordenou o projeto Agentes de Leitura do Ceará. É também escritor e poeta do grupo Os internos do pátiO.

BIBLIOGRAFIA
ALMEIDA, Maria Christina Barbosa de. A ação cultural em bibliotecas: grandeza de uma prática e limitações de um papel. Revista Brasileira de Biblioteconomia e Documentação, São Paulo, v. 20, n. 1/4, p. 31-38, 1987.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma poesia. Rio de Janeiro: Record, 2001.
LARROSA, Jorge. Nietzsche & a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
LARROSA, Jorge.  Notas sobre a experiência e o saber de experiência.  Revista Brasileira de Educação, nº 21, novembro de 2001. ANPEd - Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação. In:http://www.anped.org.br/rbe/rbedigital/RBDE19/RBDE19_04_JORGE_LARROSA_BONDIA.pdf
MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
PENNAC, Daniel. Como um romance. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.
SANTOS, Boaventura de Souza. A territorialização/desterritorialização da exclusão/inclusão social no processo de construção de uma cultura emancipatória.  In: http://www.cedest.info/Boaventura.pdf.

[1] Os agentes de leitura, da maneira aqui apresentada, têm como referência o projeto Agentes de Leitura, criado em 2005 pela Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, financiado pelo Fundo Estadual de Combate à Pobreza (FECOP), com atuação em municípios do interior cearense e em bairros da cidade de Fortaleza com baixos índices de Desenvolvimento Municipal (IDM) e de Desenvolvimento Humano (IDH), em parceria com as Secretarias de Educação e de Trabalho e Desenvolvimento Social do Estado, associações comunitárias, organizações não governamentais, instituições da sociedade civil e com as prefeituras municipais por meio de suas secretarias de cultura e de educação. O projeto teve início com 175 agentes de leitura em 15 municípios e 05 bairros de Fortaleza. Hoje são mais de 500 agentes atuando em 30 municípios e em 10 bairros da capital. O projeto se tornou referência nacional de política pública na área do livro e da leitura, transformando-se em uma ação do Programa Mais Cultura do Ministério da Cultura.


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